domingo, 2 de fevereiro de 2014

Serie Gente



 O CÉU DOS POETAS 

Para a Poeta  Janet I. Zimmermann

Ela nasceu no mesmo ano que eu
Porém, distante, ao sul ,onde nunca fui.
Mora no coração do Brasil,
e eu , na ponta de um braço aberto,
onde uma mão se abre para o mar.
creio que ela viveu no verde dos jardins
 contemplando beija- flores e colibris.
E eu, no azul , olhava as  gaivotas
 e andorinhas do mar.
Um dia ela abriu suas” asas de Jiz”*
 e voou longe, muito longe,
chegando até aqui.
Eu li suas poesias e, por me ver nelas, 
sorri  com minha “ cara de vento”.
Eu nunca a vi de perto ,
mas um dia desenhei seu rosto .
Ela nunca me viu de perto ,
mas me chama pelo apelido
de infância, o certo, 
e assim, chama a menina da cidade,
que soltava pássaros das gaiolas...
Nós nunca nos vimos de perto 
mas por duas vezes usamos 
as asas dos correios: 
Uma que me trouxe  o seu livro
E outra para fazer pousar em  suas mãos
 o desenho, que já era dela.
De tempos em tempos,
 pássaros migram do centro ao litoral,
e trazem em suas asas  os ares de lá.
Nesses momentos ,eu acredito, 
que ambas lançamos os olhos para o alto 
e nos encantamos.
É assim que as distancias desaparecem
 E nós , que nunca nos vimos de perto,
 nos encontramos ,amigas ,
no céu dos poetas.

*ASAS DE JIZ- Livro de Poemas de Janet  I. Zimmermann- Campo Grande, MS; Life Editora.

Susana Meirelles





 PALAVRA COMPRIDA

Para João



             João é um menino de olhos brilhantes e um sorriso branquinho, sempre à mostra, enquanto corre, atendendo à mãe.
-Menino vá olhar seu irmão!
E lá se vai João correndo depressa, para carregar a criança que chora entre fraldas úmidas e barriga vazia. Cuida do bebê um pouco como se fosse um brinquedinho que se move e chora, e um pouco como se fosse um filho ,que ele protege e acarinha.
O pai abandonou a família, mas aparece de vez em quando, entre uma cachaça e outra, para a alegria de João e conflito da mãe, que não sabe como fazer para prescindir da sua presença. O jeito tem sido contar com João, precocemente elevado à categoria de homem da casa, aos nove anos.
 João é um desses muitos meninos que, cedo, na vida, precisam aprender o significado de uma palavra comprida demais : responsabilidade.
- João, você ainda não foi comprar pão, menino?
-Mãe, deixa eu ir de bicicleta?
É porque o menino, de vez em quando, aparece, entre uma e outra tarefa imposta pela necessidade da vida:
- Mãe, posso usar o detergente para fazer bolinhas de sabão?
Ou surge por encanto, quase como um protesto, numa frase dita de passagem:
-Olha, minha tia, eu sou tão pequeno que, para pôr a mesa, preciso subir na cadeira.
João transforma em pistola de água a mamadeira do irmão. Ou faz o bebê de aviãozinho, mostrando a todos as suas peripécias. E o bebê? Apenas ri com tanto movimento , com as música a alto volume, quase solidário ao irmão que gosta de dançar  “olhando” ele.
-Minha mãe não está, moça, ela foi trabalhar para comprar o leite de meu irmãozinho.
- Você não acha, tia, que esta lata devia durar um ano?
Pois é, João, se a lata de leite durasse um ano, você poderia ser o menino João, para catar as conchinhas na praia sem pensar se deveria vendê-las, ou colher as flores do jardim de sua mãe, para presentear a professora com a qual você sonha, mas ainda não lhe conhece. E talvez, tivesse sua mãe mais próxima a você, penteando seus cabelos tão queimados pelo sol.
-Ah! A escola, tia? Só vou no final do ano.
 Não pode ser no final do ano, João, mas no começo do próximo! Ou do próximo tempo e da próxima vida nova que você espera acontecer, para não ter que brincar apenas nos intervalos e nem ter de pedir um beijo assim, tão envergonhado, como se já tivesse perdido o direito de ser uma criança.
Mas a alma de menino dá sempre um jeito de aproveitar uma distração da vida responsável para correr um pouquinho pela praia na hora de deixar o recado com a vizinha, sentindo o vento no rosto; tomar banho de chuva; brincar de água com o cachorro que precisa tomar banho; ou pirraçar o irmão mais novo ,por pura inveja da sua infância.
 Deixa para mim esses pratos, João, e vai brincar! Não brinca com o tempo porque ele parece bolinha de sabão, mas não é brincadeira e quando ele passa , a gente corre o risco de esquecer a arte de brincar de viver.
Ah!João, se eu pudesse, deixava para mim aquela palavra comprida que não me pesa mais.  E carregava palavra e criança no colo, presenteava sua mãe com incontáveis latas de leite, dava brinquedo e casa grande  para a criança linda e teimosa que insiste em viver no seu coração e brilhar nesses olhos.
Olhos tão comuns. Olhos de sol e de sal. Olhos que nos traduzem, que  nos decifram e que nos convidam a pensar. Olhos grandes e interroga(dores) de criança barrigudinha e descalça. Olhos de um menino brasileiro, habitante de uma vila qualquer.



Olhar de Poesia


Para Dyonéa Meirelles, minha mãe


De dia
passeava  e olhava a paisagem
dos jardins da Graça
com seus olhos esverdeados
de esperança
(e graça).
Ria fundo
Como ria!
E corria pela casa
de um a outro lado,
atarefada.
  Eu a olhava
com meus grandes olhos
circulares.
Da cozinha
Recitava poesias
Eu ouvia
E a via
olhando o mundo
com seus olhos
marejados
de águas doces
e tristes.
À noite desenhava
outros e os meus olhos  
encantados,
por tudo ver brotar
Ver flores(cer)
das suas mãos
De mãe.
Na hora de dormir
criava histórias
colorindo
minha vida
convidando-me a sonhar.
E eu que desejava parar o tempo
Não dormia.
Acordada,
o tempo não
passaria
não nos ultrapassaria
em dias.
Não dormia
pois já sentia
que em breve me faltaria
aquele olhar
de poesia.


Susana Meirelles








EXTRATO DE SEDA


Há muitos dias penso em Avâny. Percebo sua presença marcante nos corredores do meu trabalho. Naquela troca rápida de sorrisos, na minha caixa de mensagens ou na rede social de que fazemos parte, quando leio - muitas vezes sem nem responder - suas mensagens diferenciadas em letras que se repetem, para, enfaticamente, dizer o quanto algo é lindo ou quanto ela adorou.
Longas palavras sempre amáveis e delicadas.
Avâny é bela: aparece na foto e na minha lembrança, com um sorriso aberto, o nariz mais bonito que já se viu ( ela sabe disso) e o cabelo em cachos.
Quando temos a alegria de parar e conversar, Avâny conta suas histórias. Sempre se diz durona por falar o que pensa. Ela conta que briga... vá lá... briga. Eu finjo acreditar, mas sempre sorrio de suas discussões, absolutamente amorosas, quando a verdade é dita sem subterfúgios. Verdade pura e por isso, verdade amorosa.
Sou daquelas que não sabem brigar. Calo-me diante do que não gosto e sofro. Ah! como eu gostaria ser como ela e ter a liberdade de usar as palavras para sempre dizer o que penso. Deve ser por isso que eu escrevo e, por isso, eu goste tanto de escutar suas histórias, rindo delas, pois tudo parece muito leve no seu jeito franco e direto de ser.
Avâny briga para alertar, para abrir os olhos, para dar uma boa sacudidela em quem precisa disso e para dizer a verdade. Aliás, Verdade é a palavra mais parecida com ela, que tem V no nome e um acento, que ela sempre ressalta para não ser confundida com alguma Avaní ( como se precisasse de acento para ser única).
Trabalho com Avâny e a observo. Sempre tem uma palavra de conforto, um elogio, para uma a uma daquelas mães, que ali vão em busca da Avâny terapeuta ocupacional de suas crianças. Crianças que, com uma sabedoria especial e maior, sorriem para Avâny sentindo, como eu sinto, seu calor, seu amor, seu desejo de que elas cresçam e se desenvolvam.
Outro dia, perto do fim do ano, Avâny me encontrou chorando - coisa rara de acontecer, Quando acontece, porém, tem sempre uma palavra na garganta que não foi dita e está fluindo nas lágrimas como barco sem rumo, seguindo o fluxo do rio. Era por não saber brigar que eu chorava. Chorava sim, como se estivesse perto do fim: da alegria, dos ideais, da esperança.
Avâny não briga. Escuta. Acolhe. Como bicho da seda, tece tudo, ajudando-me a ver o que me parecia tão emaranhado. Ela sai e, sobre a mesa, deixa um pequeno pacote. Eram lenços de papel e eu leio o nome : Kleenex com Extrato de Seda. Enxugo minhas lágrimas e choro até perto do fim, deixando uma ultima folha  para escrever a Avâny e celebrar.
Celebrar a vida. Celebrar os fins e os inícios. Celebrar o viver que, com seus fios de seda, une as pessoas aparentemente diferentes para nos mostrar que mesmo quando somos verso e reverso, somos parecidos. Mostrar que, como as teias, há pontos que se cruzam e entrelaçam em todos nós. Celebrar, porque viver talvez seja mesmo a arte de entrelaçar delicadamente o que somos, em que acreditamos e o que fazemos, nos macios fios de nossa verdade.
Naquela manhã eu disse a Avâny que aquele pacote de lenços não seria esquecido. Não esqueci, escrevendo  na última folha:
- Avâny você é amorosidade pura. É bicho da seda que constrói com determinação seus fios, tecendo a vida em malha macia onde acolhe delicadamente pessoas, amores, amigos. Você é amorosidade não diluída pelas convenções ou preconceitos. Maciçamente amorosa, é tecedora da verdade. Se dá como seda. É a mais pura delicadeza: é amor o que você tece e, por isso, muito o merece, sem diluição.

- Avâny, você é o extrato da seda: Obrigada por enxugar as minhas lágrimas ...e por enxugá-las com a seda da sua delicadeza.



Os Sapatos Vermelhos da Noiva



Alguém disse, certa vez, que ela é assim tão bonita porque seu nome une luz e mar. Pode ser,  pois,  só um feliz casamento poderia ter gerado Lucimar.
Lucimar é bela: morena, cabelos lisos e pretos, em corte Chanel que esconde e destaca os seus olhos grandes e expressivos. Tem um coração alegre. Além de alegre, sem medidas. Você não sabe o que é um coração sem medidas? É aquele que se sente feliz quando outro coração também está feliz. Por isso é sem medidas: ele se amplia para se juntar com outros. É um coração que bate num compasso diferente: “ sou feliz e faço feliz ; sou feliz e faço feliz”. É assim que bate o coração sem medidas de Lucimar.
 Eu gosto de escutar seu coração e de escutá-la falar: tem umas piadinhas que ela conta e repete, sempre com  uma  risada gostosa, mesmo que ninguém ache muita graça. Têm também muitos casos que ela vai lembrando e contando  com um leve sotaque meio do sul, meio do norte. São histórias de corações que se juntaram ao dela: são pacientes – ela é fisioterapeuta - são amigos, parentes, colegas, conhecidos, vizinhos, desconhecidos.
Frequentemente, eu a escuto em silêncio. Algumas vezes, de carona em seu carro, que ela enche de pessoas e, como seu coração, é também sem medidas. Muitas vezes, escutando-a,  fico com vontade de chorar.
Dirigindo, ela vai contando suas historias de situações em que se fez presente para as pessoas de alguma forma. São histórias de solidariedade,  de superação, de generosidade. Enquanto ela fala, em silêncio, eu a observo: ela conta porque seu coração está alegre, para compartilhar o prazer que sentiu; conta como se suas atitudes não fossem tão diferentes do que é comum; conta como se todos nós já soubéssemos o que ela sabe: que a generosidade faz  o coração ficar mais alegre..
E ao final de cada história, ela justifica a sua atitude:
- Ah! Tive dó... A gente está no mundo para ser feliz e para fazer os outros felizes.
.           É porque se muito dá, Lucimar também muito recebe da vida: são presentes, oportunidades, homenagens, carinhos, olhares, palavras e muita sorte. Acredito que deve ser obra da gratidão que vive rondando a sua vida.
            Um dia desses, ela nos contou a história de um casamento. A noiva lhe confidenciou um segredo: talvez por algum conto de fadas, ela não sabia o porquê, sempre sonhou em casar-se usando sapatos vermelhos. O dinheiro porém, já estava acabando... será que Lucimar teria um para emprestar?
O  coração de Lucimar bateu descompassado.
Uma rápida olhada na vitrine logo em frente, e lá estava o sapato perfeito. Caro? O que importava? Teria preço fazer feliz o coração de uma noiva?
- Ah gente, tive dó... A gente está no mundo para ser feliz e fazer as pessoas felizes!
Foi um feliz casamento e a noiva estava linda com seus sapatos vermelhos e as rosas vermelhas nas mãos. Eu mesma vi a foto: o sorriso também era vermelho e branco.
  Outro dia, li uma revista que trazia na sua capa, estampada em letras vermelhas, o anúncio de uma reportagem: “A ciência da generosidade”. Um renomado biólogo da Universidade de Harvard,  o prof. Edward Wilson, estaria chamando a atenção da comunidade cientifica, ao ousar complementar a teoria da evolução de Darwin. Seus estudos comprovariam que as comunidades que prevalecem  são aquelas onde .predomina a cooperação. Isso quer dizer, que apenas a lei do mais forte e a competição não explicaria a sobrevivência do homem na Terra. Para ele, o comportamento altruísta teria sido crucial para a evolução das espécies e teria decretado a supremacia humana no planeta..
Você sabe o que é “comportamento altruísta”? É o jeito como a ciência chama o coração sem medidas.
Lendo isso, imaginei os homens primitivos, naqueles tempos de grandes catástrofes, de desconhecimento das forças da natureza, de lutas pela sobrevivência. Imaginei que, em determinado ponto do tempo, um deles deu as mãos ao companheiro, auxiliando-o. Este deve ter compreendido  e , da sua forma, disse pra os outros, como Lucimar:
-Ah gente! Tive dó...a  gente está no mundo para ser feliz e fazer as pessoas felizes  
Os cientistas estão descobrindo que um coração sem medidas faz toda a diferença e nos fez caminhar com mais beleza, no rumo da evolução, como sapatos vermelhos nos pés de uma noiva.
Olho o álbum de fotos do casamento. Uma, em especial, me chama a atenção: a igreja está toda decorada de vermelho e branco; a noiva com rosas vermelhas nas mãos , ao lado de Lucimar, deixa aparecer- como quem nada quer- um pedacinho dos seus sapatos vermelhos, sob a longa cauda do vestido branco. As duas estão de mãos dadas; os dois sorrisos são vermelhos e brancos e os dois corações, também vermelhos, estão felizes sem medidas: um está feliz porque realizou um sonho e  o outro está feliz porque realizou o sonho de alguém.
Fecho o álbum e me calo. Sinto vontade de chorar e digo baixinho para meu coração:
- A gente está no mundo para ser feliz e fazer os outros felizes. 


Susana Meirelles









            Há muito tempo atrás, eu imaginava o céu como o lugar dos anjos e dos pássaros, já que eles poderiam voar. As borboletas coloridas também estariam no céu enfeitando o azul, mas elas voariam mais perto de nós. Entre os três, apenas os anjos subiriam tão alto, a ponto de não podermos enxergá-los.
            Nas aulas de religião aprendi que entre os anjos existiriam hierarquias e subdivisões. Haveriam os Serafins, Querubins, Tronos, Virtudes, Potestades, Principados, Arcanjos e Anjos da guarda. Todos teriam missões diferentes e cumpririam as ordens de Deus. Anjos da Guarda, por exemplo, teriam o dever de estar conosco, caminhando ao nosso lado, cochichando em nossos ouvidos, lembrando-nos  os caminhos e escolhas. Somos felizes quando vivemos o nosso dom, o melhor de nós mesmos e nossos anjos da guarda sabem disso porque fazem o mesmo. Sair do nosso caminho é nos afastarmos de nossa essência, de nosso coração, de nossa alma. Mas como a maioria de nós não sabe escutar o coração, precisamos dos anjos ao nosso lado.
            Além daqueles que voavam tão alto, no céu, eu acreditava que outros anjos teriam escolhido ficar por aqui, entre nós, disfarçados, para não serem identificados. No entanto, um dia, sem que eles se dessem conta, deixariam escapar seus sinais : suas asas, sua graça e seus olhos de céu. Você não sabe o que são olhos de céu? É uma forma incomum de  ver a vida, com bondade, beleza e com uma graça especial, única, que distingue os anjos dos homens.
            Foi na faculdade de Psicologia que conheci  Kátia, quando iniciamos juntas a usar o dom especial que os psicólogos possuem, que é  a vontade voar para dentro de si e lá dentro, encontrar o melhor de si mesmas, ajudando os outros a fazerem o mesmo. Kátia era uma moça loura de cabelos cheios e compridos, muito bonitos, que ela sempre prendia para que não voassem muito, ao vento. Quando , porém , ela os soltava, era tão belo quanto um abrir de asas e as pessoas ficavam encantadas. Kátia também tinha olhos muito bonitos. Olhos cor de céu. O mesmo céu onde moram os anjos, pássaros e  borboletas. O céu dos que sabem voar para dentro e para fora. E eu notei que ela sabia...
            Anos depois, eu a reencontrei trabalhando com crianças com deficiência. Ela estava tão bonita quanto sempre foi. Olhei bem e vi os mesmos cabelos, ainda presos, querendo se soltar, querendo voar um pouquinho, mostrar quem são.
            Algumas pessoas que trabalham com crianças com deficiência,  esforçam-se para aprisioná-las à sua forma, tentando ajustá-las, moldá-las. Notei que Kátia fazia  diferente: ela se esforçava por se fazer entender  por elas e, bem ao contrário do que fazia com seus cabelos, empenhava-se para que se soltasse de dentro delas a inteligência aprisionada, os dons, as asas. Observando-a, ela me fez crer que todos podemos ser anjos, pois temos asas para voar e, se assim acreditarmos, podemos pairar bem alto, no céu, abraçados com os nossos dons.
            No entanto, foi na comemoração do dia das crianças que Kátia se revelou. Estávamos todos dançando ao som dos tambores de uma banda, “Swing do Pelô”, especialmente contratada para animar a festa. Estávamos todos: funcionários, crianças e seus pais, girando numa grande roda e, todos ali, tínhamos deficiências, tínhamos dons, porém, naquele momento, ao som daqueles tambores que me pareciam mágicos - certamente por conversarem com as batidas do nosso coração - só tínhamos asas. Numa dessas voltas eu notei que a banda trazia estampada nas camisas uma expressão, como lema: "força de vontade”.
            Percebi  que era com  força da vontade que ali estávamos. Com força de vontade aquelas  crianças haviam nascido, superando dificuldades que, muitas vezes, lhes deixaram com asas quebradas. Ali, estavam suas mães que, com força de vontade traziam suas crianças e delas cuidavam, atravessando distancias, carregando-as pela vida. Como anjos, aceitaram a missão de cuidarem dos filhos que delas precisavam para aprenderem a escutar o próprio coração. Girando na roda estávamos todos nós, carregando nossos anjos , nossas crianças interiores, muitas vezes esquecidas, mal cuidadas, aprisionadas. Todos ali desejávamos viver com a força da nossa  vontade, com nossas asas, nossas amarras, nossas deficiências e nossos dons.
            E lá estava Katia  a correr de um lado para outro, ajudando crianças a dançar, a brincar, atenta a todos, com seus olhos de céu. A banda também tocava a liberdade:”Força e pudor/ Liberdade ao povo do Pelô /Mãe que é mãe no parto sente dor/E lá vou eu.”..
            Lá íamos nós girando, quando Kátia percebeu um menino que, paralisado dentro do próprio corpo, olhava para a roda. E ela, que aprendeu a entender palavras aprisionadas, correu em sua direção e trazendo-o na cadeira de rodas, improvisou uma dança, empunhando a cadeira de um lado para o outro, girando , girando, com esforço, girando e girando, com ele  dançando.  E a criança, fez asas de seus olhos e dançou, voou , sorriu e do seu jeito,  falou. Mais distante, assistindo ao seu filho  a mãe sorria satisfeita, dançou também, deixando cair uma discreta lágrima...afinal, “mãe que é mãe no parto sente dor...”
         Eu sei  que talvez Kátia não entenda essas minhas  palavras quando lhes chegarem às mãos. Afinal- perguntará ela - o que há de tão extraordinário nisso?  pois, não é dever missão? 
          Sim..sei que isso é saber viver escutando o coração ... mas, eu escrevo, porque ali, naquele momento em que ela dançava com o menino  ao  som dos tambores,  lembrei do tempo em que eu olhava o céu procurando anjos e acreditava que poderia encontrá-los em alguma parte , talvez bem perto de mim, bem disfarçados, para não serem reconhecidos... 


            Sei que Kátia não vai entender as minhas palavras, nem a emoção nelas aprisionada, porque acreditar que tudo isso é tão comum e tão normal é exatamente onde está a sua Graça. É onde está o seu dom,  onde se abrem as asas que a conduzem a voar tão alto e tão fundo, dentro dela mesma, em direção ao melhor que tem em si. Porém, para mim, que a tudo assisti,  creio que ela revelou o seu segredo : Kátia olha o  mundo com olhos de céu.




Susana Meirelles