sexta-feira, 25 de julho de 2014

Textos de Memórias 2 - Suspiros

                                                         



                                                                    

                                                          

                                          
                        Naquelas tardes já ensolaradas, ela me dava o seu calor na sua presença maternal e acolhedora. Eu  devia ter sete anos e amava aquelas longas tardes ao seu lado. Tardes que se iniciavam com a chegada da escola, depois do banho e do almoço. Ela costurava, tricotava, enquanto eu fazia meus deveres escolares. Depois das tarefas, eu passava a entrar no mundo dela, como se investigasse o meu futuro e ao mesmo tempo desejasse guardar para sempre aqueles momentos, como um presente. Eu folheava seus livros de receitas, os moldes das roupas que costurava, suas linhas, seus agulhas, catava alfinetes que caiam ..e ficava ali sentada, investigando de onde vinham as suas mágicas.                           Aos meus olhos, minha mãe era mágica. Ela transformava ingredientes diferentes em pratos deliciosos; tecidos e linhas em lindos vestidos ricamente bordados e nossos rostos e sorrisos em desenhos a lápis em preto e branco. Ela criava histórias e transformava minha vida, trazendo sempre um pouco de poesia e brincadeiras para o cotidiano.
                Foi ela quem me ensinou a arte das transformações e a beleza da criatividade. Ela me criou, criando.  Ela transformava meus  dias em melodias.. todos os dias eram diferentes, todas as tardes tinham sua graça. Os dias não eram iguais, já que ela sabia , como ninguém, colocar neles uma pitada de graça, costurando-os com fantasia, desenhando-os com alegria..
                Não  sei se sabia o que fazia, mas ela me ensinava a ver beleza e encanto no que me cercava. Ao seu lado tudo tinha uma história, um personagem, um ensinamento.
                Numa dessas tardes, lembro-me, ela fazia suspiros: pedia que eu pegasse ovos na geladeira. Separava a gema, batia as claras em neve e  ia acrescentando açúcar, um pouquinho de limão ia batendo enquanto aquela espuma como neve e doce como açúcar – a “clara em neve” ia surgindo de suas mágicas  mãos. Depois ela colocava as gotinhas daquela neve na assadeira, levava ao forno e eu esperava ansiosa pelo resultado.
                - Mãe, Como é o nome desse doce?
                - Suspiros, ela respondeu
                - E  por que suspiros se chamam suspiros?
                Ela não hesitou:
                - Porque é tão doce! Quando a gente coloca na boca fica tão feliz que sente vontade   de suspirar...suspirar bem fundo..de alegria!
                - Ah...! suspirei eu, feliz...



                                                                         Susana Meirelles






Textos de Memórias 1- O Grampeador









O GRAMPEADOR


                

                    Ele sempre estava rodeado de papéis. No alto da mesa, sentava-se à escrivaninha que ficava no mesmo quarto onde dormia com minha mãe, já que o outro era meu e da minha irmã. Esse era mais um quarto dos livros, pois tinha duas enormes estantes do chão ao teto, circundando toda a parede. Aquilo, aos meus olhos de menina, era uma imensidão. Era como se alguém tivesse desenhado nas paredes livros coloridos e cheios de letras, que eu tentava decifrar, aprendendo a ler. 
             Meus pais dormiam entre os livros como se esses lhes dessem licença para descansar. Eu já percebia que minha mãe, por ciúme do tempo que eles lhe roubassem o marido, não gostava dessa convivência. Ela desejava mais espaço, talvez, na vida dele e  sonhava com um apartamento maior, de três quartos. Meu pai se esforçava,  economizava dinheiro para comprar, compreendendo que, na vida, deveria dar espaço para tudo.
                Enquanto isso, ela tinha de dividir seu amor com a coleção de Machado de Assis, a coleção de Freud, inúmeros livros pesados cheios de pequenos números. Meu pai era professor, matemático, estatístico. Nem sei se nasci para gostar de números, mas, ao longo da vida ,passei a amá-los, já que eles lembravam meu pai.
              Os números, como era ele, são silenciosos. Não são ruidosos e inquietos como as palavras, que pulam dentro das linhas dos livros e carregam as emoções, as lágrimas, as dores e a alegria de quem as escreve. Os números são plácidos, exatos, discretos. Meu pai era numérico, organizado, preciso, disciplinado. Minha mãe  era uma linda palavra, gorda, amorosa, cheia de luz e pulava de uma página a outra, no livro da sua vida. Eles brigavam, mas se amavam e se complementavam como letra e número.
           Ler, para ele também era uma alegria e minha mãe nem sempre entendia isso, quando sentia necessidade de sua companhia para os passeios, para pular o carnaval, para ir às festas de largo. Cada um tinha o seu jeito de ampliar o mundo  e isso eles não entendiam.
                Eu amava os dois .
           À noite meu pai chegava, tirava o paletó, colocava chinelos e escutava música: a bossa nova  era, à época, a nova “bossa” nas rádios, nas vitrolas. Ele escutava feliz, sorrindo,  como quem se banhava naquilo de que sua alma precisava..  
                Eu sentia que para ter um lugar junto ao meu pai, fazer um pouco de barulho no seu silêncio, eu precisava experimentar, provar, saborear  o mundo dele.  Assim, eu  cantava para ele todas as noites, eu o acompanhava para gravar suas músicas e já entendia de belezas que se situavam num lugar diferente da alegria. Ele me ensinou o valor da poesia,  mesmo as tristes. E pelas músicas eu ouvia meu pai, sua musica silenciosa e discreta... como um número.       
                Sentado à sua escrivaninha, ele me carregava para estar ao seu lado, eu devia ter uns seis anos,  e lá ficava entre os papéis e a máquina de datilografia, que guardava mistérios. Mistérios que eu tentava manusear, tocar.
                Numa noite dessas, ele me deixou usar o grampeador.  Duas pilhas de papéis mimeografados: eram provas que os alunos esperavam  no dia seguinte e ele me pediu para ajudá-lo . Feliz,  por fazer algo de tanta importância, fui juntando as folhas.
                E eu as unia, unia, unia de duas em duas e grampeava
                Talvez ali eu unisse dois mundos, talvez aproximasse devagarzinho sentimento e pensamento, número e letra,  homem e mulher, sol e chuva, dia e noite, sol e lua, casa e árvore, casinha com porta e janela, pai e filha. Talvez unisse os gostos diferentes e decifrasse números e letras,  lágrimas e sorrisos, pai e mãe... eu e meu pai
                - Cuidado com o dedo, filha. Advertia, protetor.
                E eu ia juntando dois em dois, unindo, grampeando para sempre, tornando tudo inseparável até o fim dos montinhos de papel, até o fim da noite, até o fim da vida, escutando a bossa nova...ali, lado a lado com meu pai..
                Como era  bom organizar de dois em dois, os sentimentos...


Susana Meirelles








terça-feira, 15 de julho de 2014

Serie Gente - A moça da Janela




A Moça da Janela

(Para Ana Karina Menezes Lima)

 A moça sorri da janela
e olha o mundo de lá
( o mundo dela).
Tem uns olhos claros,
suas janelas,
De uma cor difícil de explicar...

A moça sorri da janela
E com aquelas suas janelas
pergunta:
- “Quer entrar?”

Muitos olhos passam por ela
E na janela, é tão bela,
Que a vida comemora,
desenhando lá
onde ela mora,
uma borboleta bonita,
(de beleza colorida),
e  uma árvore verde e bela
só para ela ver
da janela.

A moça sorri da janela
E lá, onde ela mora,
tem amor e tem amora.

Meus olhos passam por ela
E como os outros pássaros
sentem vontade de ficar
e olhar, com ela,
da janela
a vida passar.


Susana Meirelles

Lírio Branco











Brotei como um lírio.
Branco no riso
Superfície azulada
dor silenciada...
De onde vim
estranhas entranhas
Peixes nadam na lama
urnas, escuras
uma secreta e bela
caverna submersa.
Ah! como chama
Como clama!
Susana é o nome
da alma que ama
no fundo de mim.

Susana Meirelles

Por uma Canção Derradeira







Aceito o silencio que você impôs à nossa morada.
Vi seus gestos gastos 
e aqueles espaços
abismando nossos olhos.
Aceito tuas notas dissonantes,
nelas também há vida ,
pulsando 
melodiosa.
Aceito o silencio que você impôs à nossa morada.
rompo  os laços, as cordas
rasgo antigas partituras
De verde, ainda a saudade.
Há saudade,
brotando do árido solo
onde desabrochavam teus lírios
de beleza,
a nossa melodia do dia –a- dia..
Aceito o silencio que você impôs à nossa morada.
não digas nenhuma palavra
não quero ser salva.
pois além desta  solidão
deste rasgo no peito,
da dor de uma imensa paixão,
eu escuto o meu violino- coração,
que delicadamente canta
e o teu silencio, encanta
compondo só, nesse solo
nossa derradeira  canção.



Susana Meirelles