domingo, 20 de outubro de 2013

DECIFRA-ME


                                                                             


Trago-te nas pontas dos dedos,
guardando-te em minhas mãos ,
 sem que o saibas.
Aguardo que me alcances 
Junto com o assombro diante da vida,
que em algum lugar esqueceste.
Afrouxa o nó da gravata 
e da garganta.
Rasga o paletó ali, à altura do teu peito, 
esquerdo.
Da vida,  encontre o encanto,
recupera o mistério 
além de ti, além do teu  
e do teu  pequeno mundo.
Agiganta-te e me alcançarás.
Relembra um tempo passado 
quando lhe indiquei o caminho,
dando o mapa, a rota, a chave
para dentro de ti.
Sou teu destino:
decifra-me, pois,  a vida já te devora.
Não pensas mais no porquê. 
Esquece o como,
 que tanto lhe consome.
Atinges o mistério ultimo:
Para que vives?
Só a tua  resposta revelará o meu nome
e o teu tamanho.


VIDA COM FIM







Quando eu te vi  pela primeira vez,
estavas escondida, encolhida, nos cantos do meu quarto.
Disfarçavas  e surgias, no medo de escuro,
pesadelos,  fantasmas, sombras da infância.
Eu trancava as  portas, vigiava janelas, temendo que me levasses tão cedo,
posto que nos contos de fadas, eras sempre tu, a ladra dos inocentes.

Mais tarde,  apareceste-me  nas missas ,sombrias e tristes.
em mistérios indecifráveis, nos crucificados
e em santos ,nos  mártires que a ti se entregavam.
Não entendia os gestos heroicos sos personegens que por mim desfilavam,
 nas aulas de história.
Eram loucuras o que faziam por ti.
Eras tão temida quanto venerada.
Ocultada no amor à pátria, a um povo , a um sonho.
Por um  ideal, tantos te entregaram a vida
e eu não compreendia suas razões.
Não havia o mar, o amar, o  riso, o sol dourando tudo?
O azul em toda parte,  despejando vida ?
estrelas a seguir, sonhando?
Amor no corpo, palpitando?

Distraí-me  nas belezas da vida;
porém, disfarçando, percebia-te disfarçada.
Eras  a maldita, eras muito mal e pouco falada,
cercada de silêncios e penumbras, como se não existisses.
Enganou-me, quando acreditei que já tivesses me deixado.
Levou-me um bem tão caro,  tão raro e,  junto, muito de mim.

Por temer teu retorno, sacrifiquei parte da vida:
perdendo para não perder, sofrendo para não sofrer,
sem notar que assim te amava e te  aguardava, precavida.
Pintaram-te de negro, tão negro quanto a minha inconsciência.
Sim, eu a temia , mas escutava em bom som  as músicas alegres  da juventude.
Era eu a mais barulhenta, a mais risonha, a mais amada.
Para não te ouvir, vestia a vida com cores alegres, seguia meu caminho...
Mas em muitas noites temi  as perdas, as ausências,
procurando-te nos rodapés.

Foi-se o tempo, foi-se a vida.
Passaste por mim através do relógio e dos calendários.
E, em formas indizíveis, senti a dor de tua presença
 nas  repetidas perdas do paraíso.
Apareceste algumas vezes:  vidas e sorrisos levaste de mim.
Foi inútil te evitar ou te questionar, aceitei,
pois não me escutavas e eu não tinha coragem de te enfrentar
face a face, arriscando-me a descobrir-te  viva.

Um  dia  vieste até mim,
encantando-me com tuas promessas,
quase a segui, pois cansada estava.
Mas a tempo  enfrentei , não me rendi,
desviando-me, quase abraçando-te, suplicando-te:
“Deixa-me ficar?”.

Levaste-me alguns dos meus dos mais queridos
Com você foram amores , amigos,
Amores,  amigos queridos.

Agora, por fim, sem saída,
 decido –me por fazer as pazes contigo,
Com coragem, sento-me para te escutar.
 “-Afinal , o que desejas de mim? O que tenho eu para te dar?”
E tu nada respondes, só me convidas a dançar.

Percebo-te suave, criança.
Voz doce, meiga, como fui na minha infância.
Duro dizer, mas pareces comigo...
Disseste-me que não entendes o porquê das lutas,
pois nada de mim desejaste tirar,
mas que sempre esteve ao meu lado
como anjo , aconselhando-me , ajudando-me a caminhar.
És tu quem me presenteias todos os dias,
com sentido,  esperança, motivos.
És, da vida a herança, destino  e ponto final.

E porque existes é que vale a pena sonhar, viver, amar,
usar de palavras, de ações ,declarar amores.
Pedir perdão ,sentir  gratidão.
Tolerância, doçura, compaixão
Paz, até entre nações.
Até na fome estás presente.
No útero, no  embrião.
Nos princípios, na vida nascente

Se para ti , serenamente, olhássemos,
mais  alegria teríamos.
Há sempre tanto por construir!
Sentiríamos mais de perto as urgências,
coração mais palpitante, mais vigilante.
Maior seria a busca pelo belo,  pelo bom  e  pelo eterno.
Sem ti nada disso faria sentido.
Nem finalidade teria a vida.
pois infinito só se faz,
na certeza da finitude.

Enquanto te escuto . quase sorrindo,
estranhamente, dançando contigo,
penso e repenso minha vida.
Depois de cada uma das tuas passagens,
houve impulso, desvio, mudanças.
Desde criança estás comigo, doando-me a vida.
E, em silêncio, agradecida, beijo-te as mãos.

E agora que nos tornamos amigas,
nunca mais me perseguirás, nem eu a temerei.
Minha vida verdadeira começou , agora  mesmo, dançando contigo
posto que só nessa dança da morte com a vida,
Vida tem sentido.
Compreendi os passos dessa cadência:
Vida sem  morte, é morte em vida.
Porque vida
com morte
É vida com fim.
Vida
sem morte
É vida
sem
fim.





Susana Meirelles


Olhos de Céu




           

                       



 Há muito tempo atrás, eu imaginava o céu como o lugar dos anjos e dos pássaros, já que eles poderiam voar. As borboletas coloridas também estariam no céu enfeitando o azul, mas elas voariam mais perto de nós. Entre os três, apenas os anjos subiriam tão alto, a ponto de não podermos enxergá-los.
            Nas aulas de religião aprendi que entre os anjos existiriam hierarquias e subdivisões. Haveriam os Serafins, Querubins, Tronos, Virtudes, Potestades, Principados, Arcanjos e Anjos da guarda. Todos teriam missões diferentes e cumpririam as ordens de Deus. Anjos da Guarda, por exemplo, teriam o dever de estar conosco, caminhando ao nosso lado, cochichando em nossos ouvidos, lembrando-nos  os caminhos e escolhas. Somos felizes quando vivemos o nosso dom, o melhor de nós mesmos e nossos anjos da guarda sabem disso porque fazem o mesmo. Sair do nosso caminho é nos afastarmos de nossa essência, de nosso coração, de nossa alma. Mas como a maioria de nós não sabe escutar o coração, precisamos dos anjos ao nosso lado.
            Além daqueles que voavam tão alto, no céu, eu acreditava que outros anjos teriam escolhido ficar por aqui, entre nós, disfarçados, para não serem identificados. No entanto, um dia, sem que eles se dessem conta, deixariam escapar seus sinais : suas asas, sua graça e seus olhos de céu. Você não sabe o que são olhos de céu? É uma forma incomum de  ver a vida, com bondade, beleza e com uma graça especial, única, que distingue os anjos dos homens.
            Foi na faculdade de Psicologia que conheci  Kátia, quando iniciamos juntas a usar o dom especial que os psicólogos possuem, que é  a vontade voar para dentro de si e lá dentro, encontrar o melhor de si mesmas, ajudando os outros a fazerem o mesmo. Kátia era uma moça loura de cabelos cheios e compridos, muito bonitos, que ela sempre prendia para que não voassem muito, ao vento. Quando , porém , ela os soltava, era tão belo quanto um abrir de asas e as pessoas ficavam encantadas. Kátia também tinha olhos muito bonitos. Olhos cor de céu. O mesmo céu onde moram os anjos, pássaros e  borboletas. O céu dos que sabem voar para dentro e para fora. E eu notei que ela sabia...
            Anos depois, eu a reencontrei trabalhando com crianças com deficiência. Ela estava tão bonita quanto sempre foi. Olhei bem e vi os mesmos cabelos, ainda presos, querendo se soltar, querendo voar um pouquinho, mostrar quem são.
            Algumas pessoas que trabalham com crianças com deficiência,  esforçam-se para aprisioná-las à sua forma, tentando ajustá-las, moldá-las. Notei que Kátia fazia  diferente: ela se esforçava por se fazer entender  por elas e, bem ao contrário do que fazia com seus cabelos, empenhava-se para que se soltasse de dentro delas a inteligência aprisionada, os dons, as asas. Observando-a, ela me fez crer que todos podemos ser anjos, pois temos asas para voar e, se assim acreditarmos, podemos pairar bem alto, no céu, abraçados com os nossos dons.
            No entanto, foi na comemoração do dia das crianças que Kátia se revelou. Estávamos todos dançando ao som dos tambores de uma banda, “Swing do Pelô”, especialmente contratada para animar a festa. Estávamos todos: funcionários, crianças e seus pais, girando numa grande roda e, todos ali, tínhamos deficiências, tínhamos dons, porém, naquele momento, ao som daqueles tambores que me pareciam mágicos - certamente por conversarem com as batidas do nosso coração - só tínhamos asas. Numa dessas voltas eu notei que a banda trazia estampada nas camisas uma expressão, como lema: "força de vontade”.
            Percebi  que era com  força da vontade que ali estávamos. Com força de vontade aquelas  crianças haviam nascido, superando dificuldades que, muitas vezes, lhes deixaram com asas quebradas. Ali, estavam suas mães que, com força de vontade traziam suas crianças e delas cuidavam, atravessando distancias, carregando-as pela vida. Como anjos, aceitaram a missão de cuidarem dos filhos que delas precisavam para aprenderem a escutar o próprio coração. Girando na roda estávamos todos nós, carregando nossos anjos , nossas crianças interiores, muitas vezes esquecidas, mal cuidadas, aprisionadas. Todos ali desejávamos viver com a força da nossa  vontade, com nossas asas, nossas amarras, nossas deficiências e nossos dons.
            E lá estava Katia  a correr de um lado para outro, ajudando crianças a dançar, a brincar, atenta a todos, com seus olhos de céu. A banda também tocava a liberdade:”Força e pudor/ Liberdade ao povo do Pelô /Mãe que é mãe no parto sente dor/E lá vou eu.”..
            Lá íamos nós girando, quando Kátia percebeu um menino que, paralisado dentro do próprio corpo, olhava para a roda. E ela, que aprendeu a entender palavras aprisionadas, correu em sua direção e trazendo-o na cadeira de rodas, improvisou uma dança, empunhando a cadeira de um lado para o outro, girando , girando, com esforço, girando e girando, com ele  dançando.  E a criança, fez asas de seus olhos e dançou, voou , sorriu e do seu jeito,  falou. Mais distante, assistindo ao seu filho  a mãe sorria satisfeita, dançou também, deixando cair uma discreta lágrima...afinal, “mãe que é mãe no parto sente dor...”
         Eu sei  que talvez Kátia não entenda essas minhas  palavras quando lhes chegarem às mãos. Afinal- perguntará ela - o que há de tão extraordinário nisso?  pois, não é dever missão? 
          Sim..sei que isso é saber viver escutando o coração ... mas, eu escrevo, porque ali, naquele momento em que ela dançava com o menino  ao  som dos tambores,  lembrei do tempo em que eu olhava o céu procurando anjos e acreditava que poderia encontrá-los em alguma parte , talvez bem perto de mim, bem disfarçados, para não serem reconhecidos... 
            Sei que Kátia não vai entender as minhas palavras, nem a emoção nelas aprisionada, porque acreditar que tudo isso é tão comum e tão normal é exatamente onde está a sua Graça. É onde está o seu dom,  onde se abrem as asas que a conduzem a voar tão alto e tão fundo, dentro dela mesma, em direção ao melhor que tem em si. Porém, para mim, que a tudo assisti,  creio que ela revelou o seu segredo : Kátia olha o  mundo com olhos de céu.





Susana Meirelles