Recuo nas asas do tempo enquanto contemplo a inscrição e o adivinho solitário caminhante nas ladeiras, nas curvas do tempo, por entre as pedras. Imagino-o observando as montanhas azuis que, suponho, deve ter-lhe servido de inspiração para o ideal de Liberdade que o acalentava. Mineiro do século XVIII, parecia um diamante perdido no meio do seu povo, do seu tempo. As ideias de Liberdade, Igualdade e Fraternidade chegavam com o vento, vindas de longe.
As palavras são como pássaros e esses três, gauleses, certamente lhe cantavam ao ouvido, não deixando sossego.
Liberdade ainda que tardia é o que diz a inscrição, acalentando o sonho e advertindo da sua demora e do seu preço.
Será que ele sabia que seu corpo, aos pedaços, poderia se tornar o exemplo da inteireza da sua alma diante do significado de uma palavra?
Libertas.
Palavras são pássaros e seu ideal está em voarem livres das gaiolas das significações. Para alguns, uma palavra com a marca da morte. Para Tiradentes, o belo canto de um pássaro, anunciando um mundo melhor.
Retorno e penso em outro mineiro ilustre: Rubem Alves, mineiro também de palavras. É ele quem escreve:
“Eu sou psicanalista e psicanalista é igual a boiadeiro. Ele também toma conta da boiada, a boiada que ele toma conta é dentro da cabeça: idéias sem conta, uma atrás da outra, idéias mansas, idéias não tão mansas, todas pastando a grama do dia-a-dia...mas de repente , por uma razão desconhecida- a gente mais desconhece do que conhece- uma idéia começa a pular, com o perigo de arrastar todas as outras, e sai esse boiadeiro da alma atrás da idéia endoidada, pra ela ficar mansa de novo.Boiadeiro usa laço de couro pra pegar vaca em disparada.. Psicanalista usa laço de palavras para pegar idéias em disparada. Ah ! Nada melhor para amansar uma palavra que coloca-la escrita, no curral do papel. Bem dizia o poeta português Fernando Pessoa que, quando a gente fala uma palavra, a gente conserva a sua virtude ao mesmo tempo que lhe tira o terror”(Alves, 2005,p.161).
Já eu, penso que as palavras são pássaros que voam serenos, seguindo suas trilhas, planando com suas asas, voando em bandos, o que lhes confere mais força e mais coragem: lição de Fraternidade. Cada uma no seu lugar, ordenada, numa bela lição de Igualdade. Palavras são pássaros e elas nos rogam Liberdade, pois precisam voar livres, na plenitude, que é sempre pura leveza. Somos nós quem as prende nas gaiolas das significações particulares. São essas gaiolas que nos fazem sofrer.
As pessoas são muito complicadas: sofrem pelas gaiolas que criam e depois de engaioladas, lutam pela liberdade que nunca lhes abandonou. E pássaro preso, todo mundo já viu: se debate agitado até mesmo se fere, querendo voar.
O psicanalista ajuda a soltar os pássaros feridos que todos guardamos, para que as palavras sigam outra vez seu destino, que deve ser de traduzir o caminho mais seguro entre o reino do sentimento e o reino da razão, onde esses belos pássaros nascem a todo instante. Assim, como pássaros libertos, torna-se possível escutar a si e ao outro, decifrando os significados mais verdadeiros e profundos, sem jogarmos as nossas tristes gaiolas, que são arapucas para prender a nossa verdade, distorcendo tudo.
Libertas: para alguns, a simples leveza que descobre dia a dia à medida que vai libertando as suas palavras feridas e engaioladas. Leveza que, depois de experimentada, quer doar também aos outros, do seu mundo. É sonho de borboleta já crescida, que não cabe mais no casulo. Pois borboletas também escutam os mesmos pássaros que cantavam para Tiradentes: Liberdade. Igualdade e Fraternidade. Para outros, pode ser a dor da solidão, e do desamparo.
Libertas: palavra sujeita ao voo pleno da alma livre no céu, ou corpo engaiolado e despedaçado.
Para Tiradentes, encontro com o diamante mais valioso, dom que não pôde renunciar, ainda que chegasse tão tarde. Porém ainda que tarde, é sempre tempo para sobrevoarmos livres e plenos.
Livres das interpretações que são sempre feitas sobre nossas palavras, ou a tentativa de engaiolá-las, mesmo sem saberem o que fazem.
Plenos, pelo respeito ao lugar de cada um no grande bando onde existimos, para sermos exatamente quem no final das contas todos somos: belos pássaros que aspiram à liberdade de existir.
Susana Meirelles
Susana Meirelles
REFERENCIA BIBLIOGRÁFICA
ALVES, Rubem- Um céu numa flor silvestre: a beleza de todas as coisas; Campinas, SP; Verus editora, 2005