terça-feira, 24 de abril de 2012

Pássaros e Gaiolas

A bandeira de Minas Gerais traz uma inscrição: “Libertas Quae Sera Tamen”, homenagem feita por este estado ao seu herói, o alferes Tiradentes.
         Recuo nas asas do tempo enquanto contemplo a inscrição e o adivinho solitário caminhante nas ladeiras, nas curvas do tempo, por entre as pedras. Imagino-o observando as montanhas azuis que, suponho, deve ter-lhe servido de inspiração para o ideal de Liberdade que o acalentava. Mineiro do século XVIII, parecia um diamante perdido no meio do seu povo, do seu tempo. As ideias de Liberdade, Igualdade e Fraternidade chegavam com o vento, vindas de longe.
         As palavras são como pássaros e esses três, gauleses, certamente lhe cantavam ao ouvido, não deixando sossego.
         Liberdade ainda que tardia é o que diz a inscrição, acalentando o sonho e advertindo da sua demora e do seu preço.
         Será que ele sabia que seu corpo, aos pedaços, poderia se tornar o exemplo da inteireza da sua alma diante do significado de uma palavra?
         Libertas.
         Palavras são pássaros e seu ideal está em voarem livres das gaiolas das significações. Para alguns, uma palavra com a marca da morte. Para Tiradentes, o belo canto de um pássaro, anunciando um mundo melhor.
         Retorno e penso em outro mineiro ilustre: Rubem Alves, mineiro também de palavras. É ele quem escreve:

“Eu sou psicanalista e psicanalista é igual a boiadeiro. Ele também toma conta da boiada, a boiada que ele toma conta é dentro da cabeça: idéias sem conta, uma atrás da outra, idéias mansas, idéias não tão mansas, todas pastando a grama do dia-a-dia...mas de repente , por uma razão desconhecida- a gente mais desconhece do que conhece- uma idéia começa a pular, com o perigo de arrastar todas as outras, e sai esse boiadeiro da alma atrás da idéia endoidada, pra ela ficar mansa de novo.Boiadeiro usa laço de couro pra pegar vaca em disparada.. Psicanalista usa laço de palavras para pegar idéias em disparada. Ah! Nada melhor para amansar uma palavra que coloca-la escrita, no curral do papel. Bem dizia o poeta português Fernando Pessoa que, quando a gente fala uma palavra, a gente conserva a sua virtude ao mesmo tempo que lhe tira o terror”(Alves, 2005,p.161).

       Já eu, penso que as palavras são pássaros que voam serenos, seguindo suas trilhas, planando com suas asas, voando em bandos, o que lhes confere mais força e mais coragem: lição de Fraternidade. Cada uma no seu lugar, ordenada, numa bela lição de Igualdade. Palavras são pássaros e elas nos rogam Liberdade, pois precisam voar livres, na plenitude, que é sempre pura leveza. Somos nós quem as prende nas gaiolas das significações particulares. São essas gaiolas que nos fazem sofrer.
      As pessoas são muito complicadas: sofrem pelas gaiolas que criam e depois de engaioladas, lutam pela liberdade que nunca lhes abandonou. E pássaro preso, todo mundo já viu: se debate agitado até mesmo se fere, querendo voar.
      O psicanalista ajuda a soltar os pássaros feridos que todos guardamos, para que as palavras sigam outra vez seu destino, que deve ser de traduzir o caminho mais seguro entre o reino do sentimento e o reino da razão, onde esses belos pássaros nascem a todo instante. Assim, como pássaros libertos, torna-se possível escutar a si e ao outro, decifrando os significados mais verdadeiros e profundos, sem jogarmos as nossas tristes gaiolas, que são arapucas para prender a nossa verdade, distorcendo tudo.
     Libertas: para alguns, a simples leveza que descobre dia a dia à medida que vai libertando as suas palavras feridas e engaioladas. Leveza que, depois de experimentada, quer doar também aos outros, do seu mundo. É sonho de borboleta já crescida, que não cabe mais no casulo. Pois borboletas também escutam os mesmos pássaros que cantavam para Tiradentes: Liberdade. Igualdade e Fraternidade. Para outros, pode ser a dor da solidão, e do desamparo.
        Libertas: palavra sujeita ao voo pleno da alma livre no céu, ou corpo engaiolado e despedaçado.
        Para Tiradentes, encontro com o diamante mais valioso, dom que não pôde renunciar, ainda que chegasse tão tarde. Porém ainda que tarde, é sempre tempo para sobrevoarmos livres e plenos.
        Livres das interpretações que são sempre feitas sobre nossas palavras, ou a tentativa de engaiolá-las, mesmo sem saberem o que fazem.
       Plenos, pelo respeito ao lugar de cada um no grande bando onde existimos, para sermos exatamente quem no final das contas todos somos: belos pássaros que aspiram à liberdade de existir.


                                                                  Susana Meirelles

                                                                                   
                                                                    




REFERENCIA BIBLIOGRÁFICA

ALVES, Rubem- Um céu numa flor silvestre: a beleza de todas as coisas; Campinas, SP; Verus editora, 2005






                                                                                                                    

domingo, 15 de abril de 2012

Passinhos de passarinho

Era  uma tarde bonita e nublada dessas que nos levam a refletir que, se há prazer em viver,  podemos  prescindir do sol para estarmos alegres, ou ao menos para estarmos juntos, no feriado, sob a chuva.
E saímos a caminhar na areia molhada, o mar, de cinzento a azul, formava pequenas poças entre as pedras, onde crianças chegavam aos poucos. Senhoras caminhavam lentamente e sorridentes, a nos mostrar que o tempo pode atingir a agilidade dos passos, mas não a vontade de brincar.
Sentindo a areia macia sob os pés, contemplávamos um espetáculo no céu: raios de sol mais ousados teimavam em vencer o peso das nuvens espessas, embelezando tudo.
-"Meu coração é nuvem e raios de sol”, refletia em silencio, sem ousar estragar com palavras a beleza do momento. Ainda estava entregue a reflexões que me pareciam intermináveis: a vida e suas razões, a inevitabilidade da morte e também a de continuar vivendo.
Parece que as tempestades não têm fim quando somos nós a vivê-las, até que um dia, elas passam e só assim podemos crer que acabam.  Mas como recordar mil vezes os dias ensolarados? E como  podemos esquecer com tanta facilidade o que ainda ontem vivemos?
Foi quando observei um pássaro que caminhava ao nosso lado, com seus passinhos delicados e velozes, como a anunciar o sol, como a anunciar a continuidade da vida. A areia ainda estava molhada e ele corria e voava, corria e voava mais um bocadinho, para apressar um pouquinho e acompanhar nossos passos, bem maiores porém, bem mais pesados.
Tudo parece certo e organizado quando a natureza vai anunciando o seu ciclo. Os  pássaros caminham na areia sob a chuva e isso é sinal: um sinal inconfundível da chegada de sol. Parece que eles são movidos por um sentido que nos falta: eles conhecem os ciclos os ritmos. Conhecem o coração da vida.
Será que viemos ao mundo desprovidos desse sentido? Ou complicamos porque temos medo e não acreditamos? Será que sabemos ouvir a nossa intuição que nos diz “não vá por aí” ou “tenha fé e esperança”, “aguarde mais um pouco” ou “está na hora de começar”, “vá em frente, sem medo”.  “Prepare-se para os dias de inverno, mas viva com intensidade o seu verão”.”viva o presente.” “declare logo o seu amor!”, “Não pense no que poderá perder mas no que poderá aprender.”
Mas que graça teria se nossos fins fossem todos previsíveis?
Já sabemos, sim: as tempestades passam, o sol reaparece, as dores têm seu tempo, Seguindo –se às perdas temos os ganhos: como a lua com seus ciclos, como os movimentos das marés, como o galo que anuncia um novo dia, como a estrela da manhã, como choro de criança que nasce para o mundo novo.
E o passarinho me disse, do seu jeito mansinho, que nossas lágrimas bem parecem restinho de chuva prateada nos nossos rostos . Porém, tudo passa, e não adianta apressar, porque muitas vezes temos passinhos de passarinho e não temos asas como eles, mas, ainda assim,  podemos contar com nosso  próprio percurso, com a confiança de que podemos transformar as situações se não nos furtarmos a vivê-las passo a passo,  com a fé no futuro e com as mãos de um amor delicado,  a nos acompanhar.


Praia de Jauá.

domingo, 8 de abril de 2012

Gente com cara de vento


Quando eu era criança me disseram que, antes de nascer, fui vento.  Eu acreditei e imaginei que, quando vento, certamente estive presente ao lado de minha mãe, de meu pai e de  minha irmã, acariciando-os.
Mais tarde me disseram que fui feita pelo amor. E eu imaginava amor, como se fosse vento: amor chega de mansinho ou intensamente. Vem e vai; faz barulho, silencia e está presente de muitas formas, mesmo quando não visto.
Ainda criança e observando tudo, conclui que pessoas, ventos e sentimentos têm diferentes  tipos e intensidades. Aprendendo sobre eles, nomeava-os como podia: gente com cara de vento suave, gente com cara de vento forte, gente com cara de vento corajoso, gente com cara de vento medroso.
 Cresci. Resolvi que, na vida, gostaria de entender as pessoas e seus sentimentos. E como se sobre isso, tudo já tivesse sido escrito, consultei livros de gente com cara de vento sério e escutei pessoas que circulavam em muitos lugares do mundo.  Desejei também entender as muitas belezas do viver: o saber com suas ciências, a arte com seus encantos e a fé com seus mistérios. Mas, sem saber, ainda buscava entender  aquilo que para mim continuava sendo um mistério: Como um vento pode tornar-se gente?.
Com o tempo, não através dos livros, descobri que nos tornamos gente quando podemos deixar no mundo uma palavra, que embora pequena, represente a nossa verdade. Quando nos permitimos descobrir e viver do nosso jeito - o melhor - por ser o nosso. Quando escolhemos caminhos e pessoas. Quando entendemos que só mudamos a nós próprios, e que isso já é muito porque há muitos mundos dentro do mundo, há muitas verdades dentro da verdade, assim como há tantos ventos, sentimentos e pessoas.
Tornamo-nos gente quando descobrimos que existem afinidades e diferenças, limites e potencialidades. Quando podemos olhar de frente a verdade, aceitando-a, sem nos conformarmos para podermos mudar. Somos gente quando podemos largar tudo e começar mais uma vez, com coragem e perseverança. Quando alcançamos a diferença – que é imensa - entre anular-se e ser solidário, entre medo e prudência, entre egoísmo e autoestima, entre rebeldia e transformação.
Com esforço, descobri que somos gente quando contamos o tempo com o nosso relógio interno, marcando as passagens da nossa vida. Somos incomparáveis e, quando encontramos o nosso lugar, compreendemos que há lugar para todos, como já compreendem as estrelas.
Vivendo, descobri que podemos ser semeadores da vida que desejamos ter, através da nossa ação no mundo,escolhendo atitudes que gere bons frutos, com novas sementes. Através da dor, notei que o sofrimento é como uma febre da nossa alma: indica algo que precisa ser mudado em nós. E sofrimento que se repete, revela que estamos falhando na mudança que precisa ser feita.
Eu entendi que a alegria é a saúde da alma e a saúde, a alegria do corpo.
Tornamo-nos gente quando entendemos que a vida é um eterno presente. A vida é um presente que não tem fim: passado só existe no presente e futuro, que é presente continuado, se faz vivendo.
À medida que fui desvendando todo esse imenso segredo, o amor foi ficando cada vez mais presente, tão visível, tão colorido, tão concreto que, na minha vida, ganhou muitos corpos.
        E tendo descoberto que viver poderia ser tão simples, entendi que há muito tempo eu era gente, tinha um corpo, mas podia ser leve como o vento que fui.
      Percebi então, que voltei a ser vento quando passei a ser livre.

Susana Meirelles